quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O que em Fernando Pessoa mais me impressiona


Do eterno erro…
Do eterno erro na eterna viagem,
O mais que [exprime] na alma que ousa,
E sempre nome, sempre linguagem,
O véu e capa de uma outra cousa.

Nem que conheças de frente o Deus,
Nem que o Eterno te dê a mão,
Vês a verdade, rompes os véus,
Tens mais caminho que a solidão.

Todos os astros, inda os que brilham
No céu sem fundo do mundo interno,
São só caminhos que falsos trilham
Eternos passos do erro eterno.

Volta a meu seio, que não conhece
Os deuses, porque os não vê,
Volta a meus braços, melhor esquece.
Que tudo só fingir que é.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O que em Fernando Pessoa mais me impressiona


I - Quando, despertos deste sono, a vida,

NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ
Não tínhamos ainda visto o cadáver de nosso Pai prudente e sábio. Por isso afastámos para um lado o altar. Então pudemos levantar uma chapa forte de metal amarelo, e ali estava um belo corpo célebre, inteiro e incorrupto..., e tinha na mão um pequeno livro em pergaminho, escrito a oiro, intitulado T., que é, depois da Bíblia, o nosso mais alto tesouro nem deve ser facilmente submetido à censura do mundo.
Fama fraternitatis roseae crucis.
I
Quando, despertos deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à Noite que nos a Alma obstrui,
Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida...
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.
Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adam Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador;
Foi criado, e a Verdade lhe morreu...
De além o Abismo, Espírito Seu, Lha veda;
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.
II
Mas antes era o Verbo, aqui perdido
Quando a Infinita Luz, já apagada
Do Caos, chão do Ser, foi levantada
Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.
Mas se a Alma sente a sua forma errada,
Em si, que é Sombra, vê enfim luzido
O Verbo deste Mundo, humano e ungido.
Rosa Perfeita, em Deus crucificada.
Então, senhores do limiar dos Céus,
Podemos ir buscar além de Deus
O Segredo do Mestre e o Bem profundo;
Não só de aqui, mas já de nós, despertos,
No sangue actual de Cristo enfim libertos
Do a Deus que morre a geração do Mundo.

III
Ah, mas aqui, onde irreais erramos,
Dormimos o que somos, e a verdade,
Inda que enfim em sonhos a vejamos,
Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.
Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.
Quem desta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
De ser; mas como, aqui, a porta aberta?
......
Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.

Só Esta Liberdade nos Concedem os Deuses


Só esta liberdade nos concedem
Os deuses: submetermo-nos
Ao seu domínio por vontade nossa.
Mais vale assim fazermos
Porque só na ilusão da liberdade
A liberdade existe.

Nem outro jeito os deuses, sobre quem
O eterno fado pesa,
Usam para seu calmo e possuído
Convencimento antigo
De que é divina e livre a sua vida.

Nós, imitando os deuses,
Tão pouco livres como eles no Olimpo,
Como quem pela areia
Ergue castelos para encher os olhos,
Ergamos nossa vida
E os deuses saberão agradecer-nos
O sermos tão como eles.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa